Uma flor nasceu na rua! em de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.” 425e18
Os célebres versos de Carlos Drummond de Andrade resumem o impacto inicial do filme Le jeune Karl Marx (no Brasil, O Jovem Karl Marx). O longa-metragem dirigido pelo haitiano Raoul Peck e co-escrito por Pascal Bonitzer foi lançado no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro deste ano e tem previsão de lançamento no Brasil para dezembro, mas, há alguns meses, já encontra-se disponível na internet.
Vicky Krieps, August Diehl e Stefan Konarske interpretaram Jenny Marx, Karl Marx e Friedrich Engels
Le jeune Karl Marx impressiona positivamente os que defendem a necessidade de propagandear o marxismo e a luta proletária no cinema e causa, justificadamente, certa estranheza e mesmo indignação entre os setores hegemônicos da crítica cinematográfica contemporânea, comprometidos com interesses e contaminados por flagrantes preconceitos de classe. Daí podemos afirmar que é mesmo uma flor rompendo o asfalto. Uma pequena homenagem à luta proletária em meio ao imenso mar cinza anticientífico e anticomunista do cinema comercial mundial.
Em 1842, Karl Marx escreve no jornal democrático “Gazeta Renana” o artigo “Debates acerca da lei sobre o roubo de lenha”. Neste texto, o jovem hegeliano de esquerda denuncia em profundidade e com veemência o despotismo prussiano. No filme, sua publicação aparece como decisiva ao despertar a perseguição do governo prussiano contra Marx e a “Gazeta Renana”, ao mesmo tempo que encerra um ponto culminante na eclosão das divergências políticas subterrâneas entre o futuro fundador do socialismo científico e os jovens neo-hegelianos. É difícil apresentar, com tamanha precisão, a importância desta obra no conjunto do nascente pensamento marxista, mas, do ponto de vista histórico, a repercussão do artigo é bem explorada no filme para ilustrar as questões de fundo que resultaram no rompimento de Marx com os seus, até aquele momento, companheiros de viagem. Certo é que, por estes tempos, o materialismo de Marx já o conduzia a farejar as bases econômicas das lutas de classes e a necessidade de estudos científicos aprofundados para elaborar uma doutrina socialista sólida.
Esta é a busca de Karl Marx e de seu companheiro de armas Friedrich Engels. Os primeiros versos da epopeia marxista, os os iniciais dos primeiros grandes dirigentes do proletariado internacional pela seara do crescente movimento operário na Europa é o que baliza todo o roteiro do filme. O encontro de Marx com Engels e as impressões causadas pela sua prestimosa investigação realizada entre os operários da Inglaterra. As polêmicas iniciais com os anarquistas. Da Liga dos Justos à Liga dos Comunistas até a publicação do Manifesto do Partido Comunista. São breves cinco anos, entre 1843 e 1848. Dias que valiam por anos e anos que valeram por séculos. Tudo isso, apresentado com coerência interna, de forma didática e hoje tão rara honestidade intelectual.
Os detratores da obra criticam principalmente a sua forma. Questionam a estética do filme que caracterizam como hollywoodiana. Apontam como incoerente a utilização de uma linguagem tida como “comercial” na abordagem de polêmicas filosóficas, alguns chegam a ridicularizar a ousada proposta de Raoul Peck como vulgarização, objetificação e mesmo fetichismo do marxismo. Tais críticas não se justificam. Na verdade, refletem o medo de classe daqueles que pretendem estratificar o marxismo na academia e temem sua necessária e inevitável ampla difusão.
E é bom que se diga que o nome da película O jovem Karl Marx não guarda nenhuma ligação com o tráfico feito na academia burguesa e por determinados “teóricos”, que se utilizam de expressão semelhante na intenção deletéria de separar (o que é impossível) Marx em um “jovem” e outro “velho”, opondo um ao outro para ressaltar um “jovem Marx” mais humano e mais revolucionário. O filme trata da luta dos fundadores do socialismo científico para fundir suas formulações com o movimento operário concreto, que resulta na primeira exposição sistemática de suas ideias na forma do manifesto de uma organização proletária, que por essa definição tornou-se a mais avançada da época. Se bem é verdade, o filme não dá conta de entrar nos pormenores das questões ideológicas e políticas, particularmente quanto às próprias contradições internas que movem o desenvolvimento do nascente pensamento marxista, mais do que uma limitação esta é uma acertada escolha política e estética.
Filme retrata, em uma das cenas, luta ideológico-política travada contra os socialistas utópicos
Não se trata de um filme para especialistas, mas, como afirmamos inicialmente, uma singela homenagem à luta proletária e ao marxismo. Está evidente, em toda a obra, a preocupação em apresentar, de forma honesta e fidedigna, o lado humano dos grandiosos personagens históricos retratados no filme, sem o que seria impossível falar em uma obra cinematográfica séria. A sagacidade e o humor mordaz de Marx. A camaradagem entre Marx e Engels e a infinita fidelidade e humildade do continuador de O Capital. O estilo de vida simples e trabalho duro na forja dos grandes precursores do movimento comunista internacional. O amor proletário que unem Marx e Jenny von Westphalen e o seu papel destacado como companheira de armas de Marx e Engels nos duros anos iniciais de organização do movimento operário. Tudo isto não tem nada a ver com vulgarizar a teoria marxista, trata-se do esforço de um cineasta contemporâneo não comunista em apresentar de forma honesta e realista o contexto histórico em que germinou a ideologia científica destinada a conduzir toda a Humanidade “do reino da necessidade ao reino da liberdade”. Nos tormentosos momentos por que a o mundo neste ano em que celebramos o centenário da Grande Revolução Socialista de Outubro, Le jeune Karl Marx cumpre o importante papel de despertar nas novas gerações o interesse pelo marxismo.