3n5l5o
Jesús Goitia, Mikel Ibáñez e Luis Lizarralde, cidadãos bascos, moravam em Montevideo, Uruguai, desde 1988. Ali, viviam pacificamente de seu trabalho no restaurante “La Trainera”. Mas estavam vinculados à luta pela independência de seu país, o que levou o Estado espanhol a requerer sua extradição em 1992.
O “pedido” era, na verdade, extorsão: os espanhóis condicionavam a seu atendimento a liberação de um empréstimo de US$ 2 bilhões e a doação de 200 ambulâncias ao Uruguai. O Estado uruguaio aceitou a chantagem. Seu povo não.
Imediatamente, teve início uma forte mobilização em defesa dos bascos. Numa declaração emblemática, o Legislativo de Montevideo aprovou uma declaração instando o governo nacional a honrar “a tradição do Uruguai, terra de asilo”.
O Estado, porém, não cedeu e, no fim de 1993, Goitia, Lizarralde e Ibáñez, como último e desesperado ato ante a iminência dos suplícios que os aguardavam nas masmorras do Estado espanhol, entraram em greve de fome, suspensa após a falsa promessa do governo de devolver-lhes a liberdade e retomada em 12 de agosto de 1994. No dia 19, am a recusar a ingestão de água, o que fez com que fossem levados da prisão ao Hospital Filtro, no bairro de Jacinto Vera, onde ficaram internados.
Na noite de 20 de agosto, convocadas por organizações políticas ou movidas por um sentimento espontâneo de solidariedade, centenas de pessoas começam a tomar as imediações do hospital para proteger os presos das garras do Estado. Na noite do dia 23, esse número havia chegado aos milhares. Muitos portavam bandeiras do País Basco (Euskal Herria, em língua basca).
Da madrugada até a noite do dia 24, abateu-se sobre Jacinto Vera a mais impiedosa repressão verificada no Uruguai desde a ditadura de 1973-84. Por ordem do ministro do Interior, Ángel Gianola, a polícia uruguaia cortou a luz em todo o bairro e atacou os manifestantes a bala. Dois jovens uruguaios, Fernando Morroni (24 anos) e Roberto Facal (38), foram assassinados por levar sua solidariedade aos bascos. Nunca se saberá o número de feridos, pois as rádios Centenário(CX 36) e Panamericana (CX 44), que investigavam e denunciavam os acontecimentos, foram tiradas do ar até que a polícia terminasse o trabalho sujo. Mas foram mais de 100, dos quais 15 a bala.
Com o cinturão de solidariedade rompido, policiais espanhois, escoltados por seus pares uruguaios, invadem a enfermaria do hospital e arrancam Goitia, Lizarralde e Ibáñez da cama para trasladá-los ao avião que os levaria à Espanha. Como último gesto de resistência, alguns trabalhadores do hospital perfilam-se e cantam o hino uruguaio enquanto se despedem dos bascos.
Em agosto de 2014, completam-se 20 anos dessa história de solidariedade e tragédia. Completam-se também 20 anos que diversas organizações populares uruguaias marcham do Obelisco (marco central de Montevideo) ao Filtro para exigir a identificação e punição dos assassinos de Morroni e Facal.
Desses 20 anos, 10 aram sob governos da Frente Ampla, coalizão socialdemocrata que, ainda antes de chegar ao poder fez-se surda às reivindicações de justiça da mãe de Morroni.Um desses governos, o de José Mujica, acaba de negar asilo à advogada Eloísa Samy, presa e perseguida no Brasil por defender pessoas que exercem seu direito de ir à rua. A negativa, como sabido, deu-se por ser o Brasil um “Estado de Direito” – o que a Espanha, em 1994, também era, sem que isso significasse efetivo respeito às garantias constitucionais dos bascos nem tampouco, hoje, às de Eloísa.
A coragem e generosidade de milhares de uruguaios e as vidas ceifadas de Morroni e Facal brilham por sua própria luz. A coincidência entre seu aniversário e a vilania demonstrada pelo atual governo uruguaio faz com que brilhem também por contraste.