O que será, que será? Que andam suspirando pelas alcovas, que andam sussurrando em versos e trovas? A pergunta inversa era a que se fazia em Recife: por que na capital pernambucana os protestos transcorriam tranquilos, enquanto nas outras capitais a coisa pegava fogo? O rio Capibaribe, pacífico, continuava a cruzar a cidade como um cão sem plumas atravessando uma rua. Na margem esquerda do rio, nos becos e botecos, nas galeras e galerias, a expectativa era que a cidadela das revoluções prosseguisse em seu despertar. 686u1h
O governador Eduardo Campos e seu mamulengo Geraldo Júlio, satisfeitos, comemoravam a aparente ividade de junho e contabilizavam futuros votos para as eleições de 2014. “Tudo tranquilo em Pernambuco, porque as coisas vão muito bem por aqui.” Crescimento econômico, porto de Suape, refinaria, estaleiro, transposição e… seca no sertão, falências e greves nas usinas de açúcar, remoções de comunidades para construção de shoppings, privatização das praias limpas e tubarões para os pobres.
Pernambuco não difere dos outros estados brasileiros. Apesar da absurda e ilusória propaganda oficial, os motivos para protestar são os mesmos. E como em todo Brasil, as razões das manifestações de junho continuam as mesmas, afinal nada mudou no país e o velho Estado segue mais apodrecido e fascista.
Mas o Capibaribe fluía com as ondas densas e mornas de uma cobra, e silencioso o povo preparava seu bote. Muitos protestos nas periferias, corte de rodovias, de avenidas, resistência a reintegrações de posse, revolta contra incêndios criminosos em favelas. Este rio, como um cão sem pelos, se reconhecia nos homens plantados na lama, negros como negra é a roupa dos jovens mascarados. Na maré alta, recebia o Capibaribe notícias de outros rios de janeiro, em meio à água salgada conheceu a história de sangue do pedreiro Amarildo, ficou sabendo das pedras adolescentes de estudantes valentes.
E assim foi tornando-se mais espesso, mais preto, mais grosso, e em agosto, foi gostoso sentir o seu gosto. No dia oito, estudantes ocupam a câmara exigindo o e livre, em votação espremida vence a proposta de desocupá-la, na madrugada, acreditando nas promessas dos vereadores. Palavra de político não vale 20 centavos, mas como 20 centavos é muito caro aos jovens brasileiros, a revolta estava armada. No dia 21, nova manifestação. A polícia estava apreensiva, na rua da Aurora, com tiros de balas de borracha tentaram acabar com o protesto, o pretexto?: jovens com bandeiras no teto de ônibus estacionados.
Acontece que esta rua, com nome de alvorada, fica justamente na margem esquerda do rio, este foi o grande erro da PM. Vai Capibaribe! ser gauche na vida, assim disse um anjo torto nas sombras do Cinema São Luis. A manifestação não se dispersou, ônibus foram quebrados, as vidraças do cinema e a testa de um estudante atingidas pelas munições de borracha. O protesto se reorganizou, os presos tiveram que ser libertados e a eata seguiu até a Câmara Municipal, como sempre, fechada para o povo. Policiais, e não vereadores esperavam os estudantes.
Lixo e pneus formaram uma grande barricada. De longe, militantes do PSTU analisavam teoricamente este fato e procuravam interpretar o fenômeno discutindo o modelo matemático de Valério Arcary sobre as barricadas de Paris e Petrogrado. Mas pelo menos eles ficaram. O pessoal do PCR já havia se retirado, protegidos em seu “covardismo” denunciavam o “vanguardismo” dos manifestantes. Policiais tentam abrir caminho para o corpo de bombeiros apagar o fogo da juventude, são repelidos com coquetéis molotov. De dentro da Câmara, protegidos pelas grades, os covardes lançam bombas e mais balas de borracha.
Os estudantes secundaristas, largando da aula, com suas fardas brancas, se juntam aos jovens de preto, protegidos por escudos improvisados, um pequeno grupo compacto, seguiu por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente, rodeados de inimigos por todos os lados, marcharam quase sempre debaixo do seu fogo. Assim, conseguiram se aproximar da porta da Câmara e acertar inúmeras pedras nas vidraças daquela casa que não é do povo. Com a chegada da tropa de choque da reação, a tropa de choque da revolução avança pela contra mão da rua do Príncipe, nesta rua que lembra monarquia não havia nenhuma Bastilha, mas um ônibus foi incendiado em seu lugar. “Nenhum vândalo foi preso”, esbravejaram os monopólios de imprensa, nenhum estudante foi detido, comemorou a juventude.
O Recife virou Rio. O Capibaribe seguia seu curso longínquo, seu trabalho profícuo de formar o oceano. Junta-se o rio a outros rios. Juntos, todos os rios preparam sua luta. Espesso, porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo).
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Citações em itálico: Chico Buarque, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Vlir Ilitch Lenin.