“Jihad” contra Jihad: Retomada da Guerra Civil Síria, Eixo da Resistência e a Resistência Palestina 493ec

Oposição Síria, cujos “jihadistas” não estouraram um estalinho de Festa Junina contra Israel em defesa da Mesquita de Al Aqsa e do povo palestino, além de atacar diretamente o governo baathista, tem entre seus alvos forças iranianas e o Hezbollah na Síria.
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“Jihad” contra Jihad: Retomada da Guerra Civil Síria, Eixo da Resistência e a Resistência Palestina 493ec

Oposição Síria, cujos “jihadistas” não estouraram um estalinho de Festa Junina contra Israel em defesa da Mesquita de Al Aqsa e do povo palestino, além de atacar diretamente o governo baathista, tem entre seus alvos forças iranianas e o Hezbollah na Síria.

No dia 28/11 a frente de organizações que compõem a chamada “Oposição Síria” lançou uma forte ofensiva contra o regime, que culminou com a tomada da capital Damasco a fuga de Assad do País na madrugada do último domingo (08). A situação fecha uma etapa da Guerra Civil Síria em curso desde 2011 e evidencia o complexo imbróglio de facções armadas e suas relações na região. 2z1a4

Desde o início dos combates inúmeras facções dispondo de exércitos e frações do território sírio, dentre as quais a própria República Árabe Síria se viu reduzida em certo momento, já conquistaram e perderam território, se enfrentaram e se aliaram e, desde 2018, com o colapso do Estado Islâmico, a guerra civil perdeu intensidade com o quase congelamento dos combates. 

Entre as facções que participam da última ofensiva que derrubou Assad, a de maior força é o grupo jihadista salafista Hayat Tahrir al-Sham (“Organização para Libertação do Levante” em árabe), seção Síria da Al Qaeda, conhecida até 2017 como frente Al-Nursa, que é o coração dos chamados “rebeldes democráticos sírios” na guerra civil desatada contra o governo Assad em 2011 e que entre idas e vindas contou com apoio dos EUA, Qatar, a monarquias do Golfo e hoje, principalmente, pela Turquia. Outro fato de relevância à análise é que ele coincide com a entrada em vigor do cessar-fogo entre o Hezbollah e Israel que trás à tona também a instrumentalização das tensões dentro do Dar Al Islam pelas superpotências a despeito da grande unidade obtida no Dilúvio de Al Aqsa em torno da Resistência Nacional Palestina liderada pelo Hamas.

O Islã como força centrípeta do Oriente Médio  2v4z4a

“Os crentes, em seu amor mútuo, misericórdia e compaixão, são como um único corpo: se uma parte do corpo sente dor, todo o corpo responde com insônia e febre.” Hadith muçulmano³

O Islã quase sempre atuou como uma força centrípeta entre os povos que o professam.

Desde os tempos em que Muhammad e seus primeiros seguidores percorriam a península Arábica a fé muçulmana cimentou a unidade no povo árabe, até então divididos em fidelidades tribais, e em menos de dois séculos os transformou em um dos maiores impérios da história. Ao contrário de outros impérios erguidos por nômades tribais, com o ar dos séculos e a subsequente fragmentação derivada da ação dos invasores e dos potentados locais ansiosos por estabelecer suas próprias dinastias, não se diluíram nas identidades dos povos mais numerosos e dos novos conquistadores, mas as converteram. Mesmo quando o Islã carece de uma autoridade central, o Califado⁴, como é hoje desde 1922, ele segue presente não apenas na fé individual dos seus crentes, como é a religião nos países mais avançados no Ocidente, mas no Idioma, no Direito, nas Ulemás, etc.

Os jovens estados árabes fundados sob os escombros do Império Otomano e do colonialismo europeu, entre seus esforços por firmar marcos fronteiriços em dunas de areia e criar uma identidade exclusiva para àquele território, enfrentaram a oposição das ulemás e dos fiéis muito cosmopolitas para o estreito nacionalismo de nações com poucas décadas de vida. 

O pan-arabismo, mesmo compartilhando de elementos identitários comuns a parte dos povos islâmicos, falhou em ser tão resiliente e aglutinador como a Ummah. Sua tentativa de unir sob uma mesma unidade estatal a maior parte dos povos árabes sob a coroa dos Hachemitas falhou na Revolta Árabe (1915-1918) devido às ambições anglo-sas no Oriente Médio e o projeto seguinte encampado por Nasser encontrou resistências externas e internas que inviabilizaram a efêmera República Árabe Unida(1958-1961), união Egito e Síria, no seu triênio como outras unificações políticas no Oriente Médio.

Forças centrífugas no Oriente Médio  622s1m

Assim, as potências ocidentais não hesitam em aproveitar dessas distinções entre o estado e a comunidade dos fiéis para semear desordem. Ao mesmo tempo que sob influência ocidental os países do Oriente Médio investiram na construção de nacionalidades territoriais, independentes do credo ou tribo, os ocidentais apoiaram as reações de descontentamento seja nas minorias que também se convenciam das demandas nacionalistas para seu próprio grupo como também os elementos tradicionalistas da sociedade, mais influenciáveis pelos ulemás.

Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), por exemplo, a Entente buscou radicalizar os súditos árabes, judeus e armênios para abrir novas frentes de batalha para desgastar o Império Otomano. No mandato francês estabelecido sobre os territórios antes otomanos, houve a secessão do Líbano de maioria cristã do resto da Síria. Recentemente os estadunidenses apoiaram de forma oportunista o movimento de independência curda no Iraque a partir da década de 1990 para enfraquecer o regime Saddam Hussein no Iraque.

Quanto aos grupos fundamentalistas eles foram a princípio pelo Ocidente (EUA, Reino Unido e Israel especialmente) não por preferirem eles no poder que os nacionalistas/progressistas árabes, mas simplesmente para inviabilizar seus processos que à época representavam perigos para seus objetivos. O nacionalismo árabe, apesar de contar com a simpatia das classes urbanas, especialmente intelectuais e oficiais militares onde a cultura estrangeira circulava com mais facilidade, nunca conseguiu romper o domínio clerical dos ulemás ou tribal dos caudilhos locais sobre a maioria camponesa ou pastora. As imagens das mulheres de saias curtas no Irã e Afeganistão sempre foram restritas aos bairros nobres da capital, no interior nunca vigoraram tais hábitos. Assim, acossados interna e externamente, os regimes nacionalistas/progressistas do Oriente Médio terminaram derrubados como o Iraque, Afeganistão e a Líbia ou tendo seu potencial reformista castrado como a Síria de Assad.

Seria demasiado atribuir somente aos ocidentais a reemergência do Islã político no último quartel do século XX, mas facilitou seu retorno ao enfraquecer todas as demais tentativas nacionalistas, progressistas ou comunistas. A Invasão ao Iraque (2003) e Primavera Árabe (2011-2014) não trouxeram a democracia liberal como pretendiam seus agentes ocidentais, sepultaram o agonizante nacionalismo árabe do cenário político na presente geração. E embora favorecidos pela geopolítica estadunidense, sabem ambos os lados que o Islã político, do ponto de vista ideológico, é ainda mais antagônico ao liberalismo estadunidense que o nacionalismo árabe. 

Fundamentalismo Islâmico: de pedra à vidraça 1u338

A princípio poderíamos achar que o fundamentalismo moderno é simplesmente um retrocesso histórico. Uma replicação de práticas medievais do Califado em sociedades contemporâneas. Até muitos de seus ideólogos assim pretenderam, retirar todas as importações ocidentais e retornar aos tempos proféticos e do Califado Rashidun. A roda história, contudo, não volta para trás.

A maior parte do fundamentalismo muçulmano partiu de leituras posteriores do Islã (posterior ao século XVIII) em reação à própria crise que vivia o mundo Islâmico em relação ao Ocidente. Jamais poderia ser a mesma política do Islã ascendente dos califados iniciais. Ressentida contra as elites muçulmanas de seu tempo, advogou um retorno ao Islã puro, anterior às tradições, jurisprudências e ulemás recentes, criou algo igualmente novo. De certa forma, similar à Reforma Protestante que buscando negar a tradição católica e o retorno ao Cristianismo Primitivo, fundamentado na leitura das Escrituras, terminaram criando uma nova igreja com sua própria tradição baseada em suas leituras particulares no cânon bíblico.

Uma de suas doutrinas, o Wahabismo ( interpretação rigorosa e ultraconservadora do Islã sunita fundada no século XVIII por Muhammad ibn Abd al-Wahhab) surgiu no interior da península Arábica no século XVIII e, esposada pelo nascente estado saudita, ganhou bastante relevância com a expansão dos sauditas sobre a maior parte da península nas décadas de 1910-1920 que financiou sua expansão doutrinária. No início do século XX, com certa correspondência aos wahabistas surgiram a Irmandade Muçulmana e o Salafismo nos séculos XX que inspiraram inúmeros movimentos armados que atuaram pelo Oriente Médio. A princípio disputando espaço com os grupos de matriz nacionalista ou progressista (mesmo marxista) eles receberam apoio do Ocidente e também das monarquias remanescentes do Oriente Médio, que por conveniência se tornaram, após Israel, os maiores apoiadores dos EUA no Oriente Médio. Um exemplo é o próprio Osama Bin Laden, fundador do grupo Al Qaeda, militante saudita salafista que financiado pela CIA e aplaudido pelo New York Times combateu os soviéticos no Afeganistão.

Apesar de seu forte apelo que atravessou fronteiras, não apenas no Oriente Médio, mas mesmo na Europa entre descendentes de imigrantes, com exceção do wahabbismo oficial na Arábia Saudita, os demais grupos não conseguiram se sustentar no poder de forma estável⁷, assim servindo objetivamente mais a dispersão dos centros anteriores de poder. Um traço histórico das últimas experiências dos movimentos salafistas é que eles combatem mais islâmicos que consideram hereges ou apóstatas que outras forças estrangeiras.

Mesmo por não terem estado imóvel a qual defender, onde a diplomacia orienta um nível maior de pragmatismo, suas posições quase sempre transcenderam em radicalismo a de seus patrocinadores, não raramente se voltando contra eles. Claramente seu projeto político poderia até ter se alimentado das monarquias muçulmanas que fomentar direta ou indiretamente essas doutrinas, mas não as via como ideal a ser seguido. Os monarcas árabes que a poucas gerações combateram os otomanos montados em camelos com cimitarras e carabinas, em menos gerações que previra Ibn Khaldun⁸ se converteram nos burlescos “shaikhs” do século XXI, com Ferraris, times de futebol e edifícios nababescos. 

Os antigos ideais jihadista que outrora embalou suas conquistas e cujo processo demandava libertar Al-Quds é tão somente uma propaganda necessária à sua própria conservação política, enquanto na prática são os maiores aliados de EUA e por isso almejam normalizar suas relações com Israel. Onde temporariamente ou circunstância favorável os movimentos jihadistas/salafistas tomaram o poder (como nos rincões da “Oposição Síria” e no Estado Islâmico), antes de restaurar antigos nobres muçulmanos trataram de estabelecer regimes de tipo junta militar instável ou confederação de senhores da guerra ainda que intitulado “emirado” (estado controlado pelo Emir, título muçulmano que significa comandante dos fiéis) ou ‘’califado”.

Emirado é o estado controlado pelo “Emir”, título muçulmano “amir al mu’minin”(em árabe) “comandante dos fiéis”. A princípio foi um cargo militar-istrativo dentro do califado islâmico, mas com sua descentralização o título ou a ser hereditário se convertendo em um título dinástico equivalente à sultão(soberano), malik (rei)

Irã: um novo modelo? 6l2p2h

Também incluído na definição de fundamentalismo islâmico contemporâneo, existe o modelo da República Islâmica do Irã, que difere não apenas pela adesão ao segmento xiita do Islã como na construção bem sucedida de uma institucionalidade funcional à realidade de seu país. Não sendo nem uma tentativa de república liberal de modelo ocidental, nem ditadura do sentido etimológico da palavra ou de uma monarquia anacrônica mesmo para os padrões do Oriente Médio, o governo iraniano é um dos mais estáveis de sua região.

Como outras revoluções, ou pretensas revoluções, a Revolução Islâmica do Irã logo que triunfou irradiou pelos arredores estimulando especialmente a população xiita que vivia submetida a governos de outras denominações religiosas e, portanto, sofriam discriminação. Esse foi o caso das populações no Iraque, Iêmen, Bahrein, Líbano e na porção leste da Arábia Saudita. Poucos anos após a ascensão do aiatolá Khomeini, surgiram por apoio ou inspiração iranianos, movimentos como a oposição do Bahrein que esboçou manifestações e levantes armados contra a monarquia sunita, no Iraque contra Saddam Hussein e o Hezbollah no Líbano. 

Também como revolução vitoriosa, o Irã foi confrontado pela invasão, esta por parte do Iraque baathista que objetivava abortar a revolução almejando expandir suas fronteiras como impedir que o vizinho influenciasse seus próprios xiitas que eram maioria frente aos sunitas do qual faziam parte a base política de Saddam Hussein. Nessa inclusive ficou provado que o Irã recebeu, entre outros, o controverso apoio de Israel que pretendia contrabalançar a então hegemonia do Iraque no Oriente Médio. De toda forma, o Irã, mesmo sofrendo com a típica desorganização subsequente à tomada de poder, venceu o invasor após 8 anos de guerra, frustrando todos seus intentos originais e sem renunciar à sua política de “exportação da revolução”.

A partir daí, em tempos de relativa paz, coube ao Irã preparar-se para os choques vindouros aprimorando sua economia, instituições e forças armadas. Sobre o modelo adotado pela revolução iraniano existe uma novidade histórica, cujo resultado supera as formas repúblicas progressistas/nacionalistas e monarquias religiosas, o Irã desde 1979 é a República Islâmica do Irã. O próprio nome sintetiza a contradição ao qual seu regime se situa: é “república” e é “islâmica”. É um governo cujo poder emana do povo, mas cujas bases se encontram nos céus. Para demonstrar a contradição, uma das principais funções do legislativo nas repúblicas é a elaboração de leis, enquanto no Islã os princípios fundantes das leis já estão dados pelo Islã. Para além dos três poderes previsto em Montesquieu, existe ainda o cargo “Líder Supremo da Revolução Islâmica”, um clérigo eleito pelos seus pares para fins vitalícios e que conserva as principais atribuições de um chefe de estado e amplos poderes de reserva sobre o princípio de wilayat al-faqih (tutela do jurista), onde o elemento islâmico impera sobre o civil.

Apesar da ingerência clerical, ou talvez por ela, o Irã possui a maior estabilidade político, desconhecendo desde 1979 golpes de estado, quebras institucionais, impeachments, alternância de partidos no governo, inclusive à morte do primeiro líder revolucionário Aiatolá Khomeini – geralmente o teste de fogo ao qual várias revoluções não sobrevivem. Ao seu redor, os regimes se dividem entre monárquicos e repúblicas débeis, sujeitas à concentração de poder, pressões externas e grupos paramilitares.

Eixo da Resistência a2z46

A exportação da “revolução islâmica” sempre foi um objetivo do regime iraniano que desde a década de 1980 tem apoiado movimentos insurgentes xiitas em vários países onde esses tradicionalmente se encontravam em posição de exclusão social e política. Apesar deles não terem sido plenamente vitoriosos em nenhum outro país e até hoje a República Islâmica do Irã ser a única de seu tipo no mundo, tais movimentos constituem forças consideráveis onde atuam. No Iêmen o Ansarallah (Houthi) governam 40% do território do país, sendo este se ecúmeno com 80% da população, tendo derrotado não apenas os seguidores do ex-presidente Hadi, como a coalizão das monarquias do Golfo lideradas pela Arábia Saudita e recentemente imposto um bloqueio naval à Israel mesmo sob bombardeio anglo-estadunidense. No Líbano, consolidaram a força armada do Hezbollah como principal força armada do país, sendo três vezes responsável por derrotar as invasões israelenses. No Iraque, desde antes da invasão do país em 2003 o Irã já apoiava grupos insurgentes xiitas que após a derrota do governo de Saddam Hussein, de predomínio islâmico sunita, se tornam a principal força política organizada do país, ocupando desde o parlamento como partidos políticos até as poderosas milícias xiitas do Iraque  que são o espinha dorsal das Forças de Mobilização Popular, uma coalizão de milícias principalmente xiitas, mas também católicas assírias, sunitas e yazidis, responsável não apenas por derrotar o Estado Islâmico no país com apoio do Irã, assediar as bases estadunidenses do país e bombardear Israel em apoio à Operação Al-Aqsa. Além deles existem movimentos insurgentes xiitas de menor envergadura no Paquistão, Afeganistão, Síria, Azerbaijão, Arábia Saudita e Bahrein.

Esses movimentos acima constituem o núcleo duro do Eixo da Resistência, contudo na década de 2010 ele evolui de uma coalizão internacional da insurgência xiita liderada pelo Irã para um sistema de alianças muito mais complexo liderado pelo Irã. Hoje compõem o Eixo da Resistência não apenas o Irã e os movimentos armados xiitas, como a República Árabe da Síria e as diversas facções da resistência armada palestina independente de suas filiações anteriores. Sob sua articulação foram derrotados o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (salvo alguns bolsões no deserto onde sobrevivem) e se elevou o Dilúvio de Al-Aqsa iniciado em Gaza pela Resistência Palestina a uma guerra contra Israel em múltiplas frentes. Talvez esta última seja a grande vitória política internacional do Irã e do Eixo da Resistência que consolidou sua condição de frente heterogênea anti-imperialista internacional do Oriente Médio. 

Para demonstrá-lo basta observar a frente de resistência palestina. A Palestina hoje é 98% islâmica sunita, sendo os xiitas uma pequena minoria menos expressiva até que os cristãos. Seus três principais movimentos: Hamas é uma corrente oriunda da Irmandade Muçulmana, organização considerada terrorista no Irã e Síria (onde apoia os Rebeldes Sírios) e boa parte do Oriente Médio, exceto na Turquia e Catar, onde gozam de apoio do governo; a Jihad Islâmica igualmente oriunda da Irmandade Muçulmana, mas mais próxima originalmente do Irã; e a Frente Popular de Libertação da Palestina se considera marxista-leninista. Todos eles, em que pese às origens diversas, integram e são apoiados pelo Irã e o Eixo da Resistência.

A Síria de Assad hoje, apesar de severamente enfraquecida e dependente da Rússia e do Irã para se manter (o rápido ataque da Oposição Síria demonstra isso), é parte integrante e essencial do Eixo da Resistência devido ao seu posicionamento estratégico que torna contíguo a maior parte do território em que eles atuam (exceto o Iêmen) e controlando áreas de fronteira com “Israel” e o Líbano favorecendo a atuação do Hezbollah e a logística dos movimentos. A Oposição Síria, cujos “jihadistas” não estouraram um estalinho de Festa Junina contra Israel em defesa da Mesquita de Al Aqsa e do povo palestino, além de atacar diretamente o governo baathista, tem entre seus alvos forças iranianas e o Hezbollah na Síria. Coincidência ou não deflagraram sua ofensiva no mesmo dia em que entrou em vigor o cessar fogo do Hezbollah com Israel, forçando o movimento de resistência libanês a se envolver numa segunda frente de combate ao norte enquanto ainda se recupera das perdas da primeira frente. Também, perdendo a Síria se dificultaria a logística e o espaço de manobra das facções do Eixo da Resistência contra Israel.

Turquia e sua geopolítica oportunista  583673

Na outra ponta do Oriente Médio outro aspirante a líder do mundo islâmico é a Turquia. Após um longo período de predomínio de frações kemalistas no poder em que suas ambições de relacionaram mais à Europa e às minorias turcas, com a ascensão do pan-islamismo do Partido da Justiça e Desenvolvimento de Recep Erdogan, relacionado à Irmandade Muçulmana, as ambições turcas se voltam novamente ao leste. Combinando a retórica pan-túrquica à pan-islâmica, Erdogan instrumentaliza ambas no intuito de nublar suas dificuldades internas e promover-se como estadista tecendo uma política de “grande potência” encenando uma postura de equidistância entre as potências, um equilíbrio das grandes potências e com projeções de poder internacionais. 

Na prática, longe dos discursos inflamados, Erdogan segue tendendo ao bloco Ocidental: permanece na OTAN, mantém laços econômicos com Israel, fustiga a hegemonia russa no Cáucaso e apoia a logística à Ucrânia de Zelenski. Sua única diferença com os governos anteriores é sua vinculação um pouco oportunista ao islamismo político que o faz pretender uma postura de “tutela” sob os outros povos muçulmanos assim como tradicionalmente a Turquia pretendia com os demais povos túrquicos. Ainda assim, sem assumir compromissos perigosos. Suas duas maiores empreitadas foram apoiar a guerra do Azerbaijão contra a Armênia enquanto sua protetora russa estava ocupada na Ucrânia e invadir o norte da Síria com consentimento das demais potências para enfraquecer o Curdistão Sírio e acoitar os “rebeldes sírios” remanescentes após estes seres derrotados por Assad com apoio da Rússia e Irã na maior parte do país.

Sua única contradição com o Bloco Ocidental é em relação à questão Curda que desde a década de 1990 vem sendo instrumentalizada pelos EUA para enfraquecer a Síria, Irã e o Iraque como possivelmente um Plano B à Israel. A maior nação sem estado de contemporaneidade, o Curdistão é o país ideal para ser “apadrinhado” pelos EUA. Como Israel, o Curdistão seria um enclave nacional entre outras nacionalidades cujos percalços da história os colocaram em condição de hostilidade. Dessa forma não haveria outro caminho – fácil – para sua sobrevivência senão compensar seu isolamento com alianças – na prática, sujeição – com potências externas, no caso os EUA. Ou seja, seria um aliado preferível aos EUA que os rebeldes sírios, mas infelizmente para os ianques não é o mais viável.

Mas como na geopolítica não existem paixões, não seria difícil os EUA abrirem mão de seus aliados curdos – organizados nas Forças Democráticas Sírias – na Síria e aceitarem o proxy Turco como alternativa. Se por um lado o jihadismo salafistas é comprovadamente um aliado dúbio/caótico para os EUA, como foi a Al Qaeda, por outro lado ele é a garantia da desorganização da Síria que permanecerá inoperante por mais umas décadas devido às guerras sectárias intestinas e, portanto, uma obstrução ao Eixo da Resistência que se verá enfraquecido ou preso num atoleiro sírio junto aos russos apoiando os remanescentes baathistas. A Síria governada pelos “Rebeldes” também uma forma de compensar a derrota anunciada da Coalizão liderada pelos EUA no Iraque, que hoje controla apenas um arquipélago de bases militares permanentemente acossado pela resistência iraquiana e incapaz de conter a aproximação Irã-Iraque. Sendo o Iraque um país de governo xiita, mas com uma importante minoria sunita suscetível à propaganda jihadistas salafista, uma Síria salafista ou filo-jihadista seria um excelente campo de treinamento para uma nova insurgência iraquiana.

Após tanto bravatear contra Israel, Erdogan entrega aquilo que ele mais precisava: uma cunha no Eixo da Resistência. Se seu governo estivesse minimamente interessado em apoiar a pauta palestina, sua primeira ação diante um levantamento armado num país cujo território serve a forças que combatem Israel, seria dissuadir por meio de vias diplomáticas ou militares a Oposição Síria, em baixa atividade desde 2018, atacar a Síria neste momento. Ao contrário, ele até agora só bombardeou infraestrutura e defesas sírias e curdas.

Conclusão e Perspectivas 3h1zz

Dois vícios historiográficos comuns em leituras retrospectivas de processos históricos são: 1º Teleologia: enquadrar todos os acontecimentos anteriores numa trama conveniente a explicar o acontecimento final como objetivo final de todas as ações, ignorando que muito dos atores históricos nem cogitava o desfecho ocorrido que não dependia apenas deles individualmente, mas de uma resultante de fatores contraditórios entre si; 2º, derivado do primeiro, é ignorar o poder da iniciativa que faz com que os movimentos políticos/militares decisivos muitas vezes criam contextos que deslocam o eixo de escolhas dos demais atores mesmo que esses sejam mais poderosos.

Sobre o primeiro vício, ainda que seja óbvio que os EUA, Turquia e Israel se beneficiaram da ofensiva relâmpago da Oposição Síria e, portanto, é tentador assumir que o timing de sua operação foi combinado numa mesa com esses três atores, não há como comprová-lo ainda. Pois em tantos outros momentos da Tempestade de Al-Aqsa seria igualmente estratégico acionar a implosão da Síria. Isso contudo é secundário quanto aos efeitos imediatos. É importante contudo, mencionar que tanto Israel como a Turquia já estavam bombardeando estruturas militares da República Árabe Síria (ação desnecessária para os objetivos militares imediatos de Israel, no máximo uma provocação) desde o fim de 2023 e, portanto, não podemos ignorar que eles (principalmente a Turquia) atuavam em algum nível de coordenação com esses rebeldes. A própria deflagração da ofensiva demonstra isso.

O que nos leva ao segundo que é dada essa situação, todas as demais forças envolvidas: o governo sírio, o Eixo da Resistência, a Rússia, os EUA, Turquia, Israel, e etc. são colocadas numa condição defensiva/reativa à ação dos “Rebeldes Sírios” que aproveitam desse tempo para tentar levar o colapso do governo Assad até que os demais atores retomam a iniciativa. Para Assad o importante é conter a sangria e segurar o avanço até que se torne vantajoso para algum aliado avalie que compense intervir.

Fazendo um paralelo da invasão da Rússia à Ucrânia, foi no primeiro mês de guerra que a Rússia fez os mais importantes avanços ao sul do país garantindo a contiguidade do território russo entre a Crimeia e Donetsk e cercou Kiev e Kharkiv, as duas cidades mais importantes da Ucrânia: se os russos fossem vitoriosos nesses dois cercos e levado o governo de Zelenski ao colapso dificilmente o Ocidente desperdiçaria tantos recursos em fortalecer a Ucrânia e provavelmente teriam acertado um acordo de partição de seu território. Sobreviver a esses cercos e não colapsar no início da guerra foi a principal vitória da Ucrânia.

Como tratado nos textos sobre a situação da Armênia, em que pese os apoios estrangeiros, se o governo não consegue se sustentar minimamente com as próprias pernas, seus fiadores pensarão bastante antes de se envolver diretamente no conflito. A Rússia pode ter ficado com uma péssima reputação internacional e, particularmente, entre os armênios por abandoná-los enquanto perdiam o Artsaque, mas ao mesmo tempo não compensa se indispor com o Azerbaijão com o qual tem boas relações comerciais e cujo território am seus oleodutos. Talvez se a Armênia e o Artsaque conseguissem um ime militar a Rússia poderia dissuadir as iniciativas azeris, mas sem isso, não. Agora novamente os russos estão diante da mesma escolha, e decerto a reação de Assad será decisiva.

Outro ponto importante é sobre a possível composição do novo governo sírio da “Oposição Síria”. Como mencionado, a “Oposição Síria” é uma frente de organizações diferentes cujo único ponto de unidade é a oposição ao governo baathista de Bashar Al Assad, sendo muitas delas salafistas. Após um colapso de Assad e um novo governo se formar em Damasco parece muito difícil que haja um entendimento muito duradouro entre essas frente. Convido o leitor a imaginar um parlamento em Damasco que tenham como componentes a Al Qaeda e seus derivados, o Estado Islâmico, remanescentes baathistas, milícias turcomenas, alauítas, drusos, católicos ortodoxos e maronitas e o PKK – todos fortemente armados – debatendo civilizadamente. Provavelmente, como o Afeganistão após a derrota da República Democrática Afegã, a queda de Assad será sucedida por uma outra guerra civil que provavelmente se espalhará pelos vizinhos (Iraque e Líbano) só servirá à Israel em seu objetivo de dividir do Eixo da Resistência e a Turquia que poderá invadir o resto do território sírio reforçando as pretensões sultanescas de Erdogan.

Sobre os curdos, traídos pelos seus fiadores estadunidenses, os curdos sírios num cenário possível de colapso da Síria de Assad estarão numa péssima condição. Entre a Turquia expansionista de Erdogan e uma Síria pró-turca com governo de composição salafista, os curdos seriam simultaneamente acossados pelo norte e o sul e provavelmente não contariam com apoio do vizinho Iraque que dificilmente apoiará os curdos sírios enquanto dissuade seus próprios curdos (também pró-EUA) de alcançar sua independência. Das opções possíveis, os EUA poderão intensificar sua presença no enclave curdo o transformando num “segundo Israel” no Levante ao peso de se indispor com a Turquia e seus vassalos, ou abrir mão de defendê-los e satisfazer os sonhos sultanescos de seu sátrapa. Considerando que os EUA estão reduzindo sua presença militar na Europa e Oriente Médio e cobrando uma postura mais proativa de seus aliados pode ser uma possibilidade.

Por fim, como todas as ingerências ocidentais no Oriente Médio, é bem possível que o tiro saia pela culatra e a longo prazo estejam criando um novo inimigo. Sendo um regime estabelecido com base no Islã político, a Oposição Síria em suas múltiplas facções pode “de repente” se virar contra seus financiadores e aliados pragmáticos para satisfazer a própria pressão de suas bases jihadistas, menos pragmáticas, e das massas de seus países. Como exemplo temos os mujahideens afegãos apoiados pelos EUA que após a expulsão soviética se uniram aos Talibãs, o clero xiita instrumentalizado na década de 1950 contra as reformas nacionalistas de Mossadegh e mais tarde comporiam o governo dos aiatolás e os próprio xiitas iraquianos que colaboraram com a Coalizão contra Saddam Hussein, mas em seguida se voltaram aos iranianos.


Luiz Messeder é professor de Geografia da rede pública, publicou a tradução de “Alma Matinal” em português e habitante das serras. Escreve sobre temas ligados à política internacional e demografia.

O texto acima expressa as opiniões do autor.

Notas:

¹Nome tradicional para a região entre a Anatólia e o Sinai, na costa mediterrâneo.

²“Casa do Islã” em árabe. Na concepção geográfica islâmica seria os locais onde prevalece o Islã.

³ O Hadith é uma compilação dos ditos e feitos do Profeta Muhammad, considerados fundamentais para a lei islâmica (Sharia) e para a prática religiosa dos muçulmanos para além das Escrituras Sagradas.

⁴ O califado ou por várias fases, incluindo os períodos Omíada, Abássida e Otomano, antes de ser abolido em 1924 pelo líder turco Mustafa Kemal Atatürk.

⁵ O termo Ocidente será bastante repetido neste artigo e tem como sentido principal o conjunto de países euro-norte-atlântico chefiados pelos EUA seja em sua feição política democrática-liberal como na seus blocos econômicos e militares.

⁶ “Califado bem guiado”, istrado pelos companheiros em vida do profeta, antes de sua transformação em uma dinastia por Omar. 

⁷ Poderia se falar que o Afeganistão sob o Talibã seria um exemplo de salafismo no poder, devido ao apoio ao salafismo internacional aos mujahiddins afegãos contra os soviéticos, contudo ele possui vinculações ideológicas locais.

⁸ Polímata árabe-magrebino que em sua famosa obra Muqaddimah, analisa os ciclos de ascensão e queda das civilizações. Seus ciclos de declínio da antiga civilização, conquista pelos nômades e subsequente decadência desses, ao perderem a asabyiah (espírito de grupo), o que se daria num ciclo de 4 gerações.

₉ Doutrina introduzida pelo Aiatolá Khomeini, estabelece, que na ausência do profeta e dos imames (inclusive o Imã oculto que retornará no fim dos tempos), ou seja, nos tempos históricos pós-proféticos, a forma de governo mais adequada para o islã seria aquela no qual os juristas exerceriam a tutela sobre a sociedade. Parece estranho a nós ocidentais, mas é quase uma versão da República de Platão para o Islã Xiita.




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